Katábasis - R. F. Kuang

Alice Law arriscou tudo para se tornar doutoranda de Jacob Grimes, um professor brilhante de magia analítica em Cambrigde. Por isso quando ele acidentalmente morre em um experimento e sua alma vai parar no Inferno, a ideia mais lógica é Alice viajar para lá e recuperar a alma do professor antes da reencarnação. 

Mas ela não vai sozinha nessa viagem. Peter Murdoch, um outro doutorando gênio de Grimes e também seu maior rival, parte com ela nessa jornada. Sem saber como o Inferno é, Alice e Peter se verão em meio a um deserto árido enquanto viajam pelos oito tribunais em busca do professor.

Atrelado a paradoxos, linguística e lógica, Katabasis é uma fantasia dark academia angustiante. Foi meu primeiro contato com a escrita da Kuang e eu confesso que os primeiros 10% da história foram bem confusos. Mas depois que o gelo quebra, a narrativa fica mais fácil e cada vez mais convidativa. Fui sugada pela jornada dos personagens em busca da alma do professor, e quanto mais avançava na leitura, mais eu queria ler.

Achei os personagens principais, principalmente Alice, muito complexos. A história volta no passado e presente para contextualizar algumas questões que devemos levar em consideração no livro: 1) Alice e Peter já foram próximos no passado, chegando a serem amigos, mas alguma coisa aconteceu ali que os afastou e não sabemos o quê. 2) A relação dos alunos com o professor Grimes é esquisita. Ao mesmo tempo que vemos uma reverência dispensada a ele, tanto Alice quanto Peter guardam um certo ressentimento do homem, e 3) Alice claramente está em um nível de exaustão mental e físico tão grande que isso afetou drasticamente seu trabalho nos últimos meses, o que pode ter sido a causa da morte acidental de Grimes.

Katabasis significa descer para baixo e claramente representa a descida dos personagens ao Submundo. Em meio as referências de Orfeu, Dante, Virgílio, Platão, Aristóteles e vários outros pensadores greco-romanos, os jovens vão usar seus conhecimentos de lógica e linguística para atravessar todos os tribunais do Inferno e as intempéries que vão enfrentar ali. Esses momentos da narrativa foram muito interessantes para a construção da história, mas chegou em determinado ponto que eu nem fiz muita questão de tentar entender, só ia na ideia que a autora estava mostrando. Você também se questiona até que ponto aquilo ali que está sendo exposto é real ou fictício e com a Kuang acho que nunca se sabe. 

O livro também traz uma crítica social ao sistema acadêmico e a estrutura da academia, que é misógina e cruel em igual medida. Até onde a busca pelo êxito deve chegar? A relação de Alice com o professor é claramente abusiva, tóxica e manipulável. O professor por muitas vezes brinca com o desejo de sucesso de Alice e a condiciona a fazer aquilo que ele quer. Alice chega a ter uma certa obsessão pelo sucesso. O medo do fracasso é tão grande que ela prefere ir ao Inferno a desistir e começar do zero, e isso é exposto na narrativa incontáveis vezes. Chega a cegar a personagem para enxergar sua própria situação, e quanto mais fica óbvio pro leitor o trabalho perverso de Jacob para com seus alunos, mais Alice tenta aliviá-lo e colocar a culpa nos outros. "Eu passei por isso porque eu quis". "Eu não sou uma vítima". "Eu posso sofrer isso porque terei uma recompensa". Essas são frases que constantemente são jogadas em meio a narrativa da personagem contra qualquer um que fale contra Grimes, e o leitor percebe uma clara forma de reprimir os verdadeiros sentimentos que Alice sente sobre ele. 

Aos poucos a mocinha vai se libertando das amarras psicológicas que Grimes inevitavelmente construiu nela, e você vai entendendo de fato aonde essa busca pela alma dele vai chegar. Mas até lá, dá pra dizer que Alice Law é uma personagem brilhante, complexa, cínica e hipócrita. Ao mesmo tempo que sentimos empatia por tudo aquilo que ela abriu mão, também sentimos raiva ao vê-la negar claramente situações de conduta abusiva que vivenciou, assédio moral, sexual, e até mesmo questões antiéticas. Por isso a constante pergunta vinha a minha mente durante essa leitura: "Vale tudo pelo êxito?".

O livro tem momentos de tensão, angústia, reflexão e divagações sobre a vida e os pecados humanos. A própria representação do Inferno como um campus de faculdade mostra que Kuang idealizou uma história onde cada tribunal representa um círculo infernal que cada aluno ou estudante enfrenta durante a academia. Eu achei muito interessante isso, mas também sinto que a autora divaga demais e fica muito presa em conceitos líricos e filosóficos, o que deixa a leitura arrastada e um tanto cansativa.

Faltando 30% para finalizar, eu acho que a trama se perdeu um pouco para mim. Sentia que a história empacou e não corria pra lado nenhum, e isso me desanimou um pouco. Mas depois, acho que a autora conseguiu recuperar o leme do barco e voltou a trazer pontos de inflexão interessantes que foram se sustentando até o final. Com certeza foi uma leitura que acabou sendo muito satisfatória e me deixou dias e dias pensando nela. Kuang tem um poder de escrita cativante e inteligente, que te deixa se sentindo burro em alguns momentos. Eu absolutamente amei essa sensação! Virou um dos favoritos do ano e eu super recomendo.

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